Do seu tamanho
 



Contos

Do seu tamanho

Regina Maria Guaragna


Bate a sineta, é meio-dia. A aula terminou, hora de ir para casa.

Luiza sai correndo para encontrar seus dois irmãos na saída da escola. Eles são mais velhos, estão estudando quatro e três séries acima da sua. Já estudam contas de vezes e dividir e fazem problemas de matemática. Mas o que eles gostam mesmo é de jogar bola.

Os três irmãos vão pelas ruas brincando, chutando pedras, quase correm, pois estão com fome e querem chegar logo.

Batem o portão da casa e gritam:

- Mãe, mãe...chegamos!

O pai chega logo depois, vem de ônibus todos os dias almoçar com a família. Tem em torno de uma hora para almoçar, tomar um cafezinho, escovar os dentes e sair de novo para o trabalho. Esta é a rotina. Sentam à mesa e falam todos ao mesmo tempo para contar as novidades.

Luiza, ao terminar o almoço, vai para o quarto. Pega uma boneca, conversa com ela e diz que vão brincar de escritório mais tarde e que, primeiro, tem que fazer seus temas. Se atira na cama abraçada à boneca, fecha os olhos e sonha...Sonha com histórias inventadas.

Mais tarde, leva seu material escolar para junto da mãe, que, no momento costura, reforma, remenda ou cerze as roupas dos filhos. Começa a fazer seus deveres de casa utilizando a mesa de costura.

- São continhas de mais, muito fácil. É só contar nos dedos! - conclui Luiza.

Logo termina, senta no chão, ao pé da máquina e fica brincando. Vive histórias, fala sozinha. Passa horas nesse enredo, que parece não ter fim, mas é interrompido por um pote de arroz de leite quentinho com canela, que a mãe havia acabado de fazer.

- Que doçura, gostosura! Que maravilha!

Logo, seus irmãos entram no quarto, gritando:

- Amanhã não vamos à aula. Lá...lará...lalá.... É Dia das Crianças! Vamos ganhar presente.

A mãe responde:

- Não. É dia de Nossa Senhora Aparecida. Não ensinaram isto na escola?

Seguem gritando e correndo, sem ouvir a mãe. Querem ganhar presente.

Luiza fica atenta, para de brincar. Aos poucos, começa a sonhar com a boneca que fala, igual à propaganda na TV, com um vestido de organza azul claro, cabelos loiros encachiados e que diz “mamãe”.

À noite, quando seu pai chega, ouve sua mãe dizer a ele que vai, no dia seguinte ao centro da cidade fazer algumas compras. Sua respiração para...Uma esperança.

Corre para seu quarto, deita na cama e fica novamente a sonhar.

No dia seguinte, ao acordar, vê que sua mãe já havia saído. Vai correndo ao pátio encontrar seus irmãos, que já estão fazendo peraltices. Canta, dança, abraça os irmãos, sorri o tempo todo, contando com a certeza de que, finalmente, vai ganhar a sua boneca.

Da sua casa, consegue ouvir os ônibus chegando na parada.

Mais uma vez, nada.

Resolve ir para seu quarto, que tem janelas para o jardim. Fica atrás da veneziana, espreitando pelas frestas.

Ouve novamente o freio do ônibus. Ouve passos na calçada. Abre-se o portão, que faz um rangido típico. Ouve os passos da mãe, que usa sapatos com saltos bem altos. Pela veneziana, só enxerga os seus pés. Que desespero! Não consegue ver a sacola, os pacotes, as compras...Sobe na cama para espreitar um ponto mais alto. Mesmo assim, não consegue ver. Não aguenta mais as batidas do coração. Corre para a porta. Sua mãe traz uma sacola que não parece ter uma caixa de bonecas.

A mãe fala:

- Filha, me ajuda a guardar os aviamentos de costura? Hoje vou terminar de costurar as camisas dos teus irmãos, e amanhã começo o teu vestido.

Luiza tem vontade de chorar, mas contém suas lágrimas. Ajuda sua mãe e corre para o seu quarto. Deita na cama, se encolhe, fecha os olhos e surgem duas lágrimas presas aos cílios. Adormece.

Aquele dia foi marcante.

A partir daí, Luiza foi perdendo o brilho dos seus olhos, seguiu ajudando a mãe e fazendo seus deveres de casa. Não havia mais espaço para sonhar.





***

É doutora em Bioquímica e tem pós-doutorado em Educação em Ciências. É docente na UFRGS. Participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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